sábado, 10 de janeiro de 2009

Amelia e o Cão

Amelia foi reprovada e não teve tempo pra se cuidar. Lembro quando a conheci o dó que senti, mas fui ensinada a não sentir coisas desse tipo pelas pessoas. Lembro de não ter me chocado, foi só um instante, mal eu imaginava o mal que Amelia seria capaz de me causar.

Sei perfeitamente do tamanho de minha antipatia, das minhas fragilidades, dos meus enganos e ainda mais de minhas loucuras. É, eu nunca fui muito certa. Digamos, não de forma tão ruim, mas talvez isso seja apenas por ser medido por eu mesma. Confesso que tenho piorado.

Amelia sabe quase metade da ajuda que deu pra que isso tenha me acontecido. Nem imagina o resto. Desde que voltou para cidade, vivia me cercando, para onde eu fosse ela estava atrás. Como se esperando um retorno de qualquer coisa. Eu posso lutar, mas eu geralmente não sou vingativa. Ao menos, não era. Ela e seu cão que vivia latindo e correndo em minha volta, parecendo obedecê-la, me ensinaram uns truques. Algumas vontades e maneiras de me satisfazer fazendo mal pra alguém, não é? Apesar da bondade daquele animal.

Juro que fui inocente mas caí em tentação. Uma hora, quando todo mundo está lá pra assistir, você não sabe como reagir e faz a primeira coisa que vem a cabeça. Eu poderia simplesmente dar as costas novamente, mas eu já tentei, e o cão maldito foi xeretar nas minhas coisas, até me levar algo importante e eu ter que ir buscar.

Fiquei longe por muito tempo, e quando estava quase encontrando em outro lugar o que ele havia levado de importante em mim, ele voltou com o rabinho entre as pernas, querendo, na realidade, só brincar. Sabe, fidelidade de cão? Ou apenas saudade da sua antiga dona. Quando ele fugiu de casa foi após uma grande briga que tivemos sobre ele esconder todos os meus sapatos e não me deixar ver os seus machucados na pata. Eu percebia o quanto sofria.

Bom, ele fugiu e eu o achei de volta mas tive que entregá-lo à uma boa veterinaria. Seria melhor pra ele. Ela logo em seguida que os apresentei já parecia apaixonada pela criatura de pêlo marrom. É, eu sabia naquele momento, que o meu companheiro teria tudo o que quisesse. Era fácil.

No ano em que passamos separados, eu sentia sua falta, mas eu sabia que devia me afastar. Ele voltou pra me mostrar que tinha ainda guardado o que me importava tanto. Tentei pegá-lo de volta, mas como sempre, com sua mania de brincar, resolveu esconder de mim. Eu sabia que aquilo não tinha mais o mesmo valor que antigamente. Então seria mais simples parar com a brincadeira que só ele gostava e uma hora achar algo que fosse também importante pra mim em outro lugar.

Ele ficou zangado. Ele rosnava, e eu chamava o seu nome várias vezes, ele fingia que não escutava, alguém já viu um cão fazer isso? Olha, eu nunca tinha visto. Lógicamente, me cansei de chamar pra terminarmos de nos despedir. Eu o expulsei da pior maneira possível, para ele realmente não mais voltar. Não quero mais vê-lo sofrer, apesar de tudo que ele me fez passar. Quantas horas, quantos dias tive que brincar sem parar. Parece divertido no começo, mas depois de um tempo, ninguém aguenta por mais que o amor pelo meu companheirinho, nunca tenha fim.

"Meu cão, meu amado cão, você está em boas mãos. Desculpe pelas mágoas. Amelia tem tudo o que precisa. Se pudesse parar algum momento e apenas dar carinho e esquecer que existe tantas coisas lá fora pra brincar, se eu pudesse descansar ao seu lado, tudo seria diferente. Agora você vai e aproveita a oportunidade que te dei, uma ótima nova dona. Eu sempre vou lembrar de você mas prefiro que possamos os dois sermos felizes. Qualquer dia eu te mando um ossinho pelo correio. Peça para Amelia que me deixe em paz, ela assumiu a responsabilidade agora ela que lide com isso. Você tem o pêlo mais macio do mundo, ah, você sabe. Bom, é isso. Fique com Deus."

Amelia ficou magoada por saber que tudo o que tinha lhe contado logo no ínicio era a mais pura verdade. Eu tentei avisá-la das dificuldades que teria, é uma luta. Talvez até uma conquista. Tive que me mudar pra longe.
As vezes ela aparece por aí, rondando, mas o meu antigo companheiro depois da carta, não voltou mais. Um cão entende o que é necessário ser feito muito mais do que um humano como eu, que deveria ter feito isso há muito tempo mas as minhas loucuras não deixava. Ah, se Amelia não tivesse ajudado, nem sei quem seriamos hoje. Ainda bem que pude sair de lá, se não ela desistiria.

Com açúcar, com afeto.

Minha foto
Foz do Iguaçu, PR, Brazil
O que há em mim é sobretudo cansaço - Não disto nem daquilo, Nem sequer de tudo ou de nada: Cansaço assim mesmo, ele mesmo, Cansaço. A sutileza das sensações inúteis, As paixões violentas por coisa nenhuma, Os amores intensos por o suposto alguém, Essas coisas todas - Essas e o que falta nelas eternamente -; Tudo isso faz um cansaço, Este cansaço, Cansaço. Há sem dúvida quem ame o infinito, Há sem dúvida quem deseje o impossível, Há sem dúvida quem não queira nada - Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: Porque eu amo infinitamente o finito, Porque eu desejo impossivelmente o possível, Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, Ou até se não puder ser... E o resultado? Para eles a vida vivida ou sonhada, Para eles o sonho sonhado ou vivido, Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... Para mim só um grande, um profundo, E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, Um supremíssimo cansaço, Íssimo, íssimo, íssimo, Cansaço... Fernando Pessoa

Fiz seu doce predileto.